A Assembleia Nacional Constituinte expressou no prembulo da Constituio Federal de 1988 que teve por objetivo central instituir um Estado Democrtico, fundado na harmonia social e comprometido, nas ordens interna e internacional, com a soluo pacfica de controvrsias.
A reside o fundamento de validade da proeminncia da autocomposio como vetor para a resoluo dos conflitos em quaisquer searas, poderes e instncias.
Solucionar pacificamente uma controvrsia implica reconhecer que a vocao natural do Estado de Direito a busca permanente da harmonia social, o que se deve perquirir, sempre que possvel, por mtodos menos invasivos ou coativos. Da porque se diz que o ato estatal representado pela sentena judicial, por ser tpico ato de fora e autoridade, eis que impositivo e derrogatrio da vontade das partes e interessados, deve ser precedido da tentativa da obteno do consenso, sendo esse um elemento que resgata e mantm a paz como condio essencial ao desenvolvimento da sociedade em seus mltiplos aspectos.
Se o litgio uma realidade inafastvel, essa obviedade no deve deixar de movimentar todos os atores do sistema de justia em busca do consensualismo, que muito alm de possibilitar a efetivao da mxima de justia perseguida por todos os povos, com ampla possibilidade de resolutividade das questes postas, seguramente contribuir para que o Poder Judicirio possa se ocupar, de forma residual e no menos importante, da gama de casos que no foram exitosamente resolvidos pelos mtodos autocompositivos.
Nesses casos, em que apesar das tentativas fracassadas da construo do almejado consenso, ou mesmo diante da intensa e complexa indisponibilidade de alguns direitos venha a se apresentar como tarefa rdua e muitas vezes inalcanvel, caber ao Poder Judicirio, como ltima barreira para a resoluo da controvrsia, afirmar a norma jurdica violada ou ameaada, com a segurana jurdica nsita jurisdio por sua peculiar qualidade da definitividade.
No demais destacar que ao longo da histria o legislador confiou ao Ministrio Pblico diversos instrumentos autocompositivos almejando que a funo essencial justia pudesse colaborar para dirimir, de modos diversos, as mltiplas formas de litgio estabelecidos sobre direitos metaindividuais. Apenas como forma de remisso, cite-se a Lei da Ao Civil Pblica, com a previso do termo de compromisso de ajustamento de conduta; a Lei dos Juizados Especiais, com a previso da transao penal e da suspenso condicional do processo; a Lei da Colaborao Premiada; e mais recentemente o “Pacote anticrime”, que estabeleceu em lei a figura do acordo de no persecuo penal, bem como a reforma da Lei de Improbidade istrativa, que fixou a possibilidade do acordo de no persecuo cvel.
At mesmo a polmica que antes sobressaa sobre a possibilidade ou no de acordo em direito indisponvel pela istrao Pblica acabou por ser superada na esfera jurisprudencial e legislativa, de forma que qualquer direito pblico pode ser transacionado com a observncia das exigncias legais, como ocorre, por exemplo, com a Lei de Mediao, cujo art. 3, inciso II, exige a manifestao do Ministrio Pblico e a homologao judicial, e com o art. 26 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro, que sufraga este mtodo como forma de eliminar irregularidade, incerteza jurdica ou situao contenciosa no direito pblico.
Apesar desses importantes e valiosos instrumentos postos disposio do Ministrio Pblico e dos nmeros crescentes de resoluo de controvrsias atravs do mtodo autocompositivo, h muito ainda a avanar nessa temtica. J se verifica que o nmero de acordos superou a quantidade de aes propostas, no entanto, para alcanar a macro resolutividade pretendida, com o escopo de empregar efetividade na soluo de conflitos em diversas reas e, por consequncia, desafogar o Poder Judicirio, para que as demandas postas em juzo sejam respondidas em tempo razovel, essa diferena de ajustes celebrados em relao aes judicializadas precisa ser ampliada.
A reflexo sobre as causas que possam ensejar o resultado ainda tmido para a ampliao do nmero de acordos nas causas de interesse e atuao do Ministrio Pblico decorre, a nosso ver, basicamente de duas razes.
A primeira de ordem cultural, pois fomos formados em um ambiente acadmico, e tambm herdamos um modelo de atuao ministerial pautado e orientado pela premissa de que a demanda e o litgio assumem a feio de pontos centrais de nossa atuao. Confundia-se, inclusive, a funo do promotor de Justia como sendo aquela parte que age em nome do Estado simplesmente carreando a pretenso deste a juzo aps uma anlise perfunctria sobre a existncia de indcios ou mesmo da viabilidade da causa, sem maiores reflexes sobre a possibilidade de xito e, principalmente, de que forma a instituio pode concorrer para a resoluo do ilcito denunciado. Existe sim, verdade, um esforo gigantesco para superao deste formato, e no podemos dizer que o legislador no tem sido bastante incentivador com a oferta de instrumentos valiosos para reduzirmos a distncia, ainda longa, entre promover aes e promover justia.
Da mesma forma, a jurisprudncia tem se revelado bastante positiva para aqueles que pretendem superar o modelo defasado de atuao pautado na simples subscrio de uma ao judicial, que se muitas vezes essencial, pode em diversos casos ser evitada com a simples abertura de um dilogo pautado na anlise pragmtica dos resultados que podem ser alcanados desde logo com a composio, em detrimento dos resultados sempre incertos e postergados em caso de manuteno da postura conflituosa comum ao litgio clssico.
Com foco na alterao do modelo mental de atuao, objetivando a superao de uma cultura mais voltada litigiosidade do que autocomposio, temos incentivado cursos e formaes voltados ao debate de tcnicas autocompositivas, e emitido um chamado para que os rgos de apoio da istrao Superior do Ministrio Pblico do Estado de Mato Grosso, como forma de influenciar e incentivar aos rgos de execuo, optem e prestigiem caminhos resolutivos que priorizem o dilogo, a construo de acordos com repercusso social e retorno abreviado de utilidade para a comunidade.
Todo esse esforo e a guinada pretendida no prescindem de que os membros do Ministrio Pblico pautem suas escolhas em uma anlise econmica do direito, resultando, por exemplo, em questionarmos se alcanaremos o pretendido princpio da eficincia com a propositura de milhares de aes judiciais, quando temos o dever de buscar a soluo das controvrsias e no simplesmente de transferirmos essa misso ao Poder Judicirio, de forma que remanesa jurisdio to somente os caos em que realmente o acordo no foi possvel apesar de todas as tentativas. Esse olhar pragmtico no menos cientfico, na medida em que o mundo terico existe por causa e em funo da vida real, onde projeta efeitos e deve colher resultados teis para o corpo social.
A segunda razo que pode contribuir para no termos alcanado um ndice mais substancial de resolutividade pela autocomposio, est ligada carncia de instrumentos internos de reviso que permitam, no mbito do prprio Ministrio Pblico, a discusso sobre qual a medida institucionalmente adequada para o caso, de forma que a propositura da ao no seja a nica e imediata soluo, permitindo-se em casos de recusa, ou at de omisso do membro do Ministrio Pblico, que se discuta se naquele caso em particular no seria mais adequado e razovel, em detrimento da propositura imediata de uma ao, a celebrao de um acordo que pudesse pr fim ao problema.
Podemos mencionar, a ttulo de exemplo, a previso na normativa do Ministrio Pblico do Estado de Rondnia que prev a possibilidade do interessado recorrer ao Conselho Superior do Ministrio Pblico caso o membro em primeira instncia se omita ou recuse pactuar ajuste para pr fim causa. Na mesma esteira, tramita perante o Senado Federal o Projeto de Lei n 4337, de 2023, proposto pelo Senador Mauro Carvalho Jnior (MT), com o intuito de estabelecer que em casos de recusa ou omisso do membro do Ministrio Pblico, caber ao Conselho Superior a possibilidade de determinar a realizao do termos de ajustamento de conduta ou do acordo de no persecuo cvel, estabelecendo-se um mecanismo de controle sobre a atuao do promotor de Justia, mantendo-se, no entanto, a possibilidade da prpria instituio dar a ltima palavra sobre o cabimento ou no do ajuste.
Existe um esforo interinstitucional para que o sistema de justia e cidadania alcance melhores resultados, seja mais resolutivo, gil e efetivo, e o Ministrio Pblico do Estado de Mato Grosso soma e continuar a somar esforos nesta caminhada, seja compondo, fortalecendo e participando dos Centros Judicirios de Soluo de Conflitos e Cidadania do Poder Judicirio, seja das Mesas Tcnicas do Tribunal de Contas, sem prejuzo da atuao diria e difusa dos membros ministeriais por meio da pactuao de centenas ou milhares de acordos. Alm disso, fortaleceremos ainda mais o nosso Ncleo Estadual de Autocomposio (NEA), e estruturaremos a instituio de forma crescente para a preponderante resoluo dos conflitos pela via da composio, pois esse seguramente o caminho que torna a nossa instituio verdadeiramente til para a sociedade que destinatria de nosso trabalho.