Em 2009, onze anos aps ter sido criado, o Exame Nacional do Ensino Mdio a por uma reforma que o modifica completamente. At ento uma prova de 63 questes que cobrava principalmente a capacidade de interpretao de texto, o exame se torna um grande vestibular, realizado em dois dias, e se consolida, ano aps ano, como a principal porta de entrada para a educao superior no Brasil.
Neste 2016, ano em que o Enem completa sua maioridade, o formato e o objetivo da prova voltam a ser discutidos. Na presidncia do Inep, rgo responsvel pela formulao do exame, est a professora Maria Ins Fini, uma das criadoras do exame em 1998, crtica do carter atual da prova e que no descarta uma reforma que resgate a proposta inicial da avaliao.
"O Enem atual foi uma construo histrica, com a participao dos reitores, dos secretrios de Educao dos Estados. Mexer nele vai ser um grande retrocesso. Parece mais um capricho de quem acha que dona do exame, no " />
O questionamento de Fernando Haddad, atual prefeito de So Paulo e o pai da reforma do Enem de 2009, realizada em sua gesto como ministro da Educao, cargo que ocupou de 2005 a 2011 durante os governos Lula e Dilma. A edio do Enem anterior sua posse no MEC tinha registrado 1,5 milho de inscritos. Quando deixou a pasta, mais de 6 milhes haviam participado da prova.
Hoje, a nota do exame usada tanto para pleitear vaga em instituies pblicas, por meio do Sisu (sistema de seleo unificada), como tambm requisito para se candidatar a uma bolsa do ProUni ou do Fies.
UOL - A principal mudana no Enem foi promovida em 2009, durante sua gesto no MEC. Como voc avalia esse processo de transformao?
Fernando Haddad - O Paulo Renato [Paulo Renato Souza, ministro da Educao no governo FHC em cuja gesto foi criado o Enem] disse uma frase na poca que merece ser resgatada. Quando houve a mudana em 2009, ele se posicionou contra e disse que o Enem j no existia mais. Que tnhamos mantido a grife do nome, mas mudado completamente o contedo. Ele estava certo. De 1998 a 2008, ele um exame, de 2009 em diante ele completamente diferente: os propsitos, a estratgia. Ns mantivemos o nome at para romper com uma tradio de troca de nomenclatura. Mas outro conceito de prova.
Qual o conceito?
Ns queramos comear a reforma do ensino mdio pelo Enem, por isso ele dividido em quatro reas do conhecimento. A partir da, havia outros objetivos, subprodutos desse primeiro, como acabar com o vestibular, transformar o Enem na mtrica de qualidade do ensino mdio no lugar do Saeb [Sistema de Avaliao da Educao Bsica] e iniciar uma discusso sobre a base nacional comum. Meu projeto de Enem nunca foi s uma mudana de prova de um dia para dois. Quando sa do MEC, no final de 2011, tnhamos cumprido a primeira tarefa, que era justamente consolidar o exame, que gigantesco. O restante aconteceria com o tempo...
Que poderia caminhar no sentido do que prev a medida provisria do ensino mdio?
Sim. Tem uma parte da MP, a parte boa, que no tem novidade. O Enem j estava promovendo essa diviso por reas no ensino mdio. O Sisu foi montado de maneira a permitir que cada universidade possa ponderar o peso de cada prova a partir do perfil do curso. Para ingresso em engenharia, por exemplo, o peso da prova de matemtica poderia ser 5; fsica e biologia, 4; e cincias humanas, 1.
A ideia era de uma reforma orgnica...
Orgnica e sem MP, porque a MP um desastre. a primeira vez que a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educao, de 1996] reformada por medida provisria. Isso nunca aconteceu nos 20 anos de existncia. um precedente horroroso, porque educao dilogo, antes de mais nada. Voc pode lanar um programa por MP. O Prouni foi lanado assim. Mas a LDB nem poderia recepcionar MP. Alis, se eles mesmos [governo Temer] esto dizendo que a reforma comea em 2019, qual o sentido de exigir a aprovao num prazo de uma MP, com os debates apertados? Se a reforma tivesse sido proposta, acho que os estudantes teriam aceitado o debate.
Os crticos reforma que voc promoveu em 2009 afirmam que a mudana fez com que o exame perdesse a caracterstica de diagnstico, o transformou apenas uma prova de massa.
Ele j no tinha caracterstica de diagnstico. Primeiro que no respeitava a Teoria de Resposta ao Item, a TRI, usada no mundo todo. Como uma prova que no segue a TRI serve para diagnosticar o que quer que seja? Era uma prova muito precria, no servia rigorosamente para nada. Sem srie histrica, no podia nem ser comparvel no tempo.
O processo de consolidao do Enem ps 2009 tambm foi complicado, no ? O furto da prova, no fim do ano, no colocou tudo em xeque?
O problema original ali foi que o Tribunal de Contas da Unio cismou que o Enem teria de ser licitado. Ns falvamos que era impossvel, em funo dos riscos. Voc no licita uma operao to delicada e que envolve tantos atores. Ningum tem capacidade de coordenador o Enem, a no ser o prprio MEC e, para isso, ele teria de contratar os parceiros para garantir a segurana do sistema. Tanto isso verdade que nenhum vestibular licitado. A Fuvest no licita o vestibular da USP [Universidade de So Paulo]. Mas no havia como vencer por argumentos. Precisou existir uma desgraa. Obvio que depois do furto, o TCU nunca mais fez carga em cima disso. Ficou provado, na prtica, que estvamos com a razo. Tanto que, nos anos seguintes, os problemas so pontuais, envolvem 0,1%, dos inscritos, percentual compatvel com a TRI, que justamente permite socorrer o exame quando h necessidade, como neste ano [por conta das ocupaes nas escolas, o exame foi adiado em 405 locais de prova]
Mas, especificamente em 2009, no houve o risco de que o novo modelo no fosse continuado?
Era uma questo de honra. Nunca houve risco porque eu no iria recuar jamais. At pelo contrrio. O presidente Lula me chamou e brincando perguntou: "voc vai precisar do Exrcito, da Marinha ou da Aeronutica?" Eu respondi que dos trs e ainda da Polcia Rodoviria Federal, das polcias militares e dos Correios. Fiz a lista toda de rgos que seriam mobilizados para fazer uma prova em 60 dias para 4 milhes de pessoas. Ele botou todo o aparato e da pudemos contratar quem ns queramos. No havia mais presso pra licitar e pacificou o entendimento junto ao TCU de que o MEC estava certo. No precisvamos ter ado por aquilo. Depois disso, ano a ano, s cresceu.
Apesar de no ter anunciado que tipo de mudana pode fazer, a atual presidente do Inep, professora Maria Ins Fini [uma das criadoras do exame, em 1998], j sinalizou que pode alterar a prova, que ela acredita ser hoje uma "lista de contedos". Como voc v isso?
Acho que essa mudana tambm seria por uma questo de custo, para deixar a prova mais barata. No conheo os atuais reitores, mas no meu tempo de ministro essa proposta no seria aceita jamais. Ela no faz sentido. um desmonte daquilo que estava sendo construdo. O Enem atual foi uma construo histrica, com a participao dos reitores, dos secretrios de Educao dos Estados. Mexer nele vai ser um grande retrocesso. Parece mais um capricho de quem acha que dona do exame, no ?
Mudar o contedo da prova pode fazer com que as universidades pblicas parem de adotar o exame como critrio de seleo?
Receio que, se houver uma reforma na linha do que est sendo anunciado, a gente pode perder adeses importantes. Isso no prudente. O certo seria sensibilizar as universidades para usar o Sisu de maneira adequada. Porque a ferramenta est preparada para ponderar as mdias de forma quase que sob medida para cada curso. Seria o movimento que eu faria como ministro. E da, sim, voc teria escolas de ensino mdio que iriam preparar mais para exatas, para humanidades, para educado profissional. Voc iria diversificar o ensino mdio de forma inteligente: base comum nacional e pesos diferenciados para reas especficas de saber.
Essa reforma do ensino mdio tendo o Enem como indutor, como voc defende, tambm bem lenta, no ?
O ensino mdio complicado no mundo inteiro --o jovem comea a ter autonomia e a autonomia no tem s vantagens, voc tem de saber o que fazer com ela. Tanto que o Pisa [avaliao internacional organizada pela Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico (OCDE)] aplicado aos 15 anos e depois disso cada pas tem uma histria. Voc avalia aos 15 anos e depois s volta a avaliar a produo cientfica. Esse miolo muito complicado. Mas a gente imaginava que corrigindo o fundamental e acertando os parafusos do superior, chegaria o momento de reajustar o mdio. E chegou, mas no desse jeito, por meio de uma MP que numa parte s atualizou o que j acontecia e na outra um desastre. um erro fatal na educao. Errou na frmula, voc pode estar certssimo que no vai ter volta.
E a frmula atual do Enem tem no que ser aperfeioada?
Acho que preciso fazer uma reforma na matriz do Enem, enxug-la um pouco em parceria com as universidades. preciso tambm pedir aos reitores para sensibilizarem a sua comunidade a ponderar as notas das provas de acordo com a vocao de cada curso. As pessoas olham para o Sisu em relao s polticas afirmativas e no olham para o lado educacional dele. Isso, aliado base nacional comum, faria que fosse sendo arrumado o que o maior desafio mundial da educao: essa etapa dos 15 anos 19 anos. Estvamos no caminho, mas eles nunca engoliram a reforma, e menos ainda que ela tenha dado certo.
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